1.3 Pré-história a base de morfina
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Na
sala de cirurgia, enquanto a Eneida recebia anestesias de diversos tipos de
substancias em sua barriga para dar à luz ao pobre Luke via parto cesariano, a
televisão, que ficava presa em um suporte no alto da parede da sala de espera,
foi sintonizada num número de rede televisiva, que misturava música e imagem,
ainda desconhecido até então: MVT – Music Video TV. Por ele, a gente ficava
sabendo quais eram os artistas que alçavam as paradas de sucesso internacional.
Enquanto eu nascia, eram os Tears For
Fears que estavam em primeiro lugar com o hit Everybody wants to rule
the world.
O
vídeo-clipe começava com um garotinho de origem aparentemente mexicana fantasiado
de cowboy e andando de velotrol enquanto Curt Smith, baixista do grupo, cruzava
a estrada com um cadilac. Em toda a
maternidade, havia cerca de vinte televisores nos mais inusitados cantos da
instituição. Todos os televisores sintonizados no mesmo canal. Na portaria, no
estacionamento, no elevador, no berçário, na sala de parto, não havia um espaço
imune da batida desse hit.
Nenhuma
das anestesias funcionou em Eneida e os médicos partiram para a preparação do
ritual do parto normal pondo-a de cócoras e dando uma nova injeção anestésica,
já que a passagem era muito pequena.
-
O que é isso que você aplicar em mim, sua filha da mãe?
-
Uma anestesia simples, minha querida, a base de morfina para relaxar os
músculos da vagina. Respondeu a auxiliar de cirurgia calmamente sem se deixar
ser insultada.
-
Tudo que, no fim, tem “ina”, tem má sina.
Alertou a mulata Eneida contorcendo-se toda para dar à luz a Luke.
A
ascensorista mastigava um chiclete, a enfermeira dosava gotas de homeopatia nos
recém-nascidos dentro das incubadoras, os seguranças cochilavam e os médicos
pediam para a Eneida fazer força.
-
Vamos! Força! Você consegue. Está saindo, está saindo. Só mais um pouco. O
médico a motivava.
Dois
afros-descendentes dançavam alegremente em um posto de gasolina abandonado, um
garoto de pinta australiana tomava um sorvete despreocupado. Nascer branco,
como acho que sou, ou me jogar debaixo de uma fonte que jorra petróleo para me
tornar um negro de valor? Ao ter saído por inteiro das entranhas da mulata
Eneida houve um silêncio tão grande. Os médicos olhavam para a criança e para a
mãe estranhando o nascimento de uma criança branca dentro de um útero
negro.
Eu,
a coisa branca e indesejada, saí de sua vagina melado de um sangue preto e
retinto, e de um líquido amniótico que me deu preguiça para abrir os olhos. A
mulata Eneida deu um grito que acordou o edifício hospitalar e os
recém-nascidos, arrancando um pedaço do dedo da pobre auxiliar de cirurgia que
estava ao seu lado a consolando.
- Everybody wants to rule the world. Curt Smith e Roland
Orzabal finalizaram pela TV anexada à parede do berçário e pelo rádio do carro
de Homero que não conseguiu chegar a tempo preso no engarrafamento.
Leia: Pré-história a base de morfina. Parte I e Parte II
Foto: Cartaz da Dentsu de Pequim para o Viagra
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